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NOTÍCIAS DE ARQUEOLOGIA

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Quarta-feira, 06.03.13

À procura do canivete suíço da Pré-História

"Uma haste de cervídeo pode ser muito útil na fase final, de pormenor", diz. Em poucos minutos, uma rocha aparentemente banal pode transformar-se num biface perfeito, com um gume tão afiado que poderíamos usá-lo para fazer cortes de precisão em carne crua.

Filipe Paiva aprendeu a talhar pedra em Tarragona, onde defendeu a sua tese de mestrado sobre as indústrias líticas da Lousã, trabalho inédito, já que o Paleolítico da serra está por estudar. Moldar a pedra com as mesmas ferramentas que usariam os hominídeos que viveram na Península Ibérica há centenas de milhares de anos ajuda-o a perceber melhor como pensavam estes caçadores-recolectores, como organizavam as suas comunidades nómadas e distribuíam tarefas para garantir a sobrevivência numa época em que é bem provável que pelo território que é hoje português andassem animais de grande porte, como elefantes, ursos e rinocerontes.

"Quando pegamos em muitos dos machados de mão, lascas e bifaces que recolhi, podemos identificar formas diferentes de pensar", explica este arqueólogo de 30 anos que anda há oito pela Lousã, sobretudo pelas margens do rio Ceira, à procura dos vestígios destes homens - pedras talhadas, usadas para cortar, raspar e escavar.

Até agora, reuniu 67 artefactos, que estudou e catalogou, mas garante que basta dar uns passeios pela serra para aumentar a colecção."O que as pessoas mais identificam dos livros da escola é o biface, que é uma espécie de canivete suíço da Pré-História porque tem vários usos possíveis, embora sirva sobretudo para cortar peles e carne. A lasca é maior, mais tosca, e pode chegar a pesar meio quilo. O machado de mão era muito provavelmente utilizado para desmembrar os animais. Ninguém desmancha um urso com um bisturi", diz Paiva, que identificou já 23 locais com artefactos, um número que, acredita, estará muito longe de atingir os 10% dos que há espalhados pela região.

Cada artefacto tem a sua função, como os talheres num faqueiro. Mas como é que se sabe se um pedaço de quartzito dará um bom machado? "Se o som que faz quando outra pedra lhe toca é metálico, é bom; se for oco, é mau. Demorei muito tempo a perceber isto. Foi preciso dar cabo de alguns dedos e talhar muitos [pedaços de quartzito] que se partiram a meio do processo."

 

O piloto-arqueólogo Foi com o avô, que tinha uma oficina onde hoje é uma das salas de estar do turismo de habitação que dirige - o Quintal do Além do Ribeiro, que funciona na casa de família, construída em 1752 -, que o jovem arqueólogo se habituou a olhar para o chão com o "vício de procurar". Primeiro parafusos, que considerava tesouros, hoje bifaces e machados do Paleolítico. Pelo meio, ficam os fósseis que o pai lhe trazia da caça.

"Gosto de olhar para o chão. Habituei-me a isso, e hoje é quase um vício. As minhas memórias de paisagem têm sempre mais a ver com a cor da terra e com as rochas do que com as árvores e as casas. E isso acontece por causa da Arqueologia e dos treinos de trial."

Filipe Paiva é piloto de trial em motas e foi assim que fez a sua primeira descoberta, em 2005. A modalidade exige muito treino fora de estrada e, para encontrar vestígios de uma ocupação que acredita ter sido muito dispersa, nada melhor do que sair dos caminhos principais.

Paiva estava na Foz de Arouce quando deu com a primeira pedra talhada, completamente por acaso. E é precisamente à Quinta de Foz de Arouce, propriedade centenária com 60 hectares, 15 dos quais ocupados por vinhas de onde saem vinhos premiados, que leva o PÚBLICO para explicar a diferença entre uma rocha talhada e outra que sofreu uma erosão natural.

A tarefa não é fácil, já que, à chegada ao terreno onde um marco comemora uma das mais célebres batalhas das invasões francesas (1811, quando Masséna já batia em retirada, empurrado por portugueses e ingleses), há rochas soltas por todo o lado, como se alguém as tivesse semeado entre os pés de videira. Muitas são roliças, com a superfície polida, porque antes - muito antes -, o rio corria naquele planalto e não lá em baixo, no vale, explica o arqueólogo, que fez mais de 2000 quilómetros a pé e de mota desde que começou a prospecção para a tese de mestrado, em 2008.

Sempre que uma rocha tem fracturas concoidais - que apresentam superfícies lisas e curvas, semelhantes ao interior de uma concha - é porque teve a mão do homem. "Quando encontramos uma fractura concoidal, sabemos que aquela rocha foi talhada", diz o arqueólogo, apontando para um dos exemplares armazenados na Aflopinhal, associação de desenvolvimento florestal da Lousã, onde fez o estágio em que inseriu grande parte do seu trabalho de prospecção no concelho. "A natureza não faz fracturas em concha nem retoques. Quando pegamos num destes machados, por exemplo, vemos que há aqui um fito preciso, que o gume está adaptado a uma tarefa específica."

A natureza, explica Paiva, provoca dois tipos de fragmentação, ligados a variações de temperatura: uma, por causa do calor, deixa a superfície das rochas com um efeito rugoso, tipo casca de laranja; o outro, designado por crioclastia, acontece sempre que a água, depois de entrar nos veios e fendas de uma pedra, congela, fazendo com que ela se parta. "Quando a pedra dá uma pancada noutra pedra, cria uma onda de choque, que faz com que a lasca se desprenda. E é fácil de identificar, porque deixa um cone hertziano."

Estes artefactos podem fazer-nos recuar milénios no tempo. Até 500 mil anos, acredita Paiva, embora não possa ainda comprová-lo. "Para já, não podemos definir com certeza a sua datação. O que podemos dizer é que o Homo sapiens e o Neanderthal já não usam este tipo de tecnologia."

Fonte: Lucinda Canelas (24.02.2013). Público: http://www.publico.pt/autor/lucinda-canelas

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por noticiasdearqueologia às 22:33



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