Parte da história da ocupação da então periferia do Rio de Janeiro, datada do século XVI, numa região do município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, desapareceu como pó. Os sítios arqueológicos Terra Prometida e Aldeia das Escravas II, considerados de grande importância pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), foram devastados, sendo que do primeiro sobraram apenas 10% da área, devido à extração indiscriminada de areia e saibro para a construção civil. Diante dos danos à memória e ao meio ambiente, o Ministério Público Federal (MPF), em São João de Meriti, moveu sete ações civis públicas contra o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e sete mineradoras. O Inea e o DNPM são acusados de emitir autorizações irregulares e não fiscalizar as empresas.
Das sete ações, seis se referem à localidade Parque Barão do Amapá, em Caxias, com dezenas de areais. Em visita ao local, O GLOBO constatou que, nos canteiros desativados depois que a exploração de areia chegou à exaustão, há equipamentos abandonados, corroídos pela ferrugem, um risco para a contaminação do solo e do lençol freático. A outra ação do MPF diz respeito à autorização para atividade de extração mineral na Área de Proteção Ambiental (APA) São Bento, situada em terras do Incra e sujeitas a inundações periódicas, onde há espécies ameaçadas de extinção. Em todas as ações, o procurador da República Renato Machado pede, liminarmente, que os órgãos não autorizem nem permitam qualquer nova atividade de extração mineral nas áreas já degradadas.
— A destruição está a olhos nus. O Inea e o DNPM parecem ignorar as leis. É fundamental que os órgãos ambientais, e mesmo o DNPM, respeitem os planos diretores municipais, bem como consultem o Iphan previamente, em casos de intervenções em sítios arqueológicos, o que não vem ocorrendo em Caxias. A Conterra, empresa que devastou parte do sítio arqueológico Aldeia das Escravas II, continuou por muito tempo extraindo areia, sem se importar com o valor histórico. Além disso, aquele ambiente está bastante degradado e não tem como se regenerar tão cedo — lamentou o procurador.
Construção civil acelerou processo
Segundo Renato Machado, os grandes eventos que o Rio vai sediar desencadearam um aquecimento da construção civil, levando à liberação de licenças sem a exigência de elaboração de Estudos de Impacto Ambiental e do Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima):
— A pressão do poder econômico acabou por criar flexibilizações e, lamentavelmente, deixou-se de exigir o EIA-Rima.
Responsável pelas escavações do Sítio Aldeia das Escravas II, a arqueóloga Jandira Neto, gerente do programa de arqueologia e educação patrimonial do Arco Metropolitano (anel rodoviário que está sendo construído pelo estado), conta que a região já estava bastante afetada quando começaram os trabalhos de pesquisa:
— O Sítio Terra Prometida já estava muito impactado. Pouco restou. Já o Aldeia das Escravas II era registrado pelo Iphan antes mesmo das obras do Arco. A Conterra tinha uma licença de exploração da área. A empresa só parou quando percebeu o risco de pagar pesadas multas.
São réus das ações do MPF: Conterra Mineração e Comércio, Construir Rio de Janeiro Empreendimentos, Monte Belo Extração de Areia, Areal da Divisa, Areal Monte Sol de Iguaçu, Mineração Ric Mat e Sofaraxá. O MPF pede que elas apresentem projetos de recuperação das áreas degradadas e que sejam condenadas a pagar indenizações de cerca de R$ 15 milhões.
O DNPM, o Inea e a Conterra informaram desconhecer as ações. Sobre os danos, o DNPM respondeu que os títulos das lavras foram concedidos de acordo com a lei e após a apresentação da licença ambiental. Já o Inea ressaltou que os sítios só foram identificados pelo Iphan após o licenciamento das obras do Arco Metropolitano, em 2010. Em nota, o Inea acrescentou que, ao tomar conhecimento do valor histórico pelo Iphan, solicitou a paralisação de extração na área, que só foi liberada depois da demarcação do sítio. Em sua defesa, o dono da Conterra, Jairo Boechat, disse que sua empresa está no local desde 2001 e, ao saber da importância do sítio, demarcou o local e contratou o Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB) para fazer o resgate e a preservação do material arqueológico.
Na mesma região, um total de 70 sítios
Embora em pequena quantidade, as escavações no Sítio Aldeia das Escravas II, em Duque de Caxias, revelaram vestígios da pré-história do Brasil. Segundo Jandira Neto, arqueóloga do Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB) e gerente do programa de arqueologia e educação patrimonial do Arco Metropolitano, foram encontrados no local cacos de cerâmica e artefatos de pedras de índios tupis-guaranis. A pesquisadora conta que foram descobertos 70 sítios na região. Em 66 deles, peças foram resgatadas.
— Trata-se de um sítio muito importante. Era uma área indígena que foi ocupada pelo colonizador. Não existia Baixada Fluminense. A população da época usava os rios da região, navegáveis, para chegar a Minas Gerais. No Aldeia das Escravas II, encontramos os moirões (estacas) do porto que existia por lá. O material que conseguimos salvar tem mais de 300 anos — explicou Jandira.
A arqueóloga do Iphan Regiane Gambim ressaltou a importância dos sítios, principalmente o Aldeia das Escravas II:
— Ele é tão importante que o Iphan não permitiu que tivesse suas peças totalmente resgatadas. Parte foi preservada para pesquisas.
Segundo o IAB, o Sítio Aldeia das Escravas II tinha uma área de 69 mil metros quadrados, mas apenas 34,5 mil metros quadrados foram preservados. No local, foram resgatados peças de louça do século XVI e dois relógios de sol.