As gravuras, que representarão o culto da fecundidade, só agora foram dadas a conhecer, depois de o caçador ter contado o seu segredo a um professor da Escola Secundária de Tondela, que desde há 20 anos se dedica à investigação do património megalítico.
Em mais um dia de caça, há 15 anos, António Ferreira passou no local onde já tinha estado várias vezes e decidiu sentar-se para descansar, no cimo de uma formação rochosa.
«Primeiro localizei um buraco maior, depois comecei a notar que havia mais aprofundamentos na rocha, levantei as pernas e vi mais», contou, acrescentando que, entusiasmado, se levantou, começou a limpar o musgo que cobria a rocha e viu «que fazia um conjunto».
«Apercebi-me de que poderia haver aqui uma coisa com bastante significado», recordou, enquanto apontava para as gravuras, entretanto já traçadas a giz, que mostram o que parecem ser duas serpentes, uma imagem feminina com um recém-nascido a sair-lhe do ventre e outra masculina a oferecer algo aos deuses.
No entanto, como não conhecia arqueólogos ou alguém que se dedicasse ao estudo destas matérias, achou que o melhor que podia fazer «era guardar em segredo», para que o local «não fosse visitado por vândalos que estragassem uma coisa que, aparentemente, tinha algum significado».
Revelou o segredo apenas a um filho seu, com receio de que lhe acontecesse alguma coisa e «não houvesse um herdeiro conhecedor deste achado», e visitava-o com muita frequência, para ter a certeza de que continuava intacto.
Até que, há poucos meses, Jorge Gomes, professor da Escola Secundária de Tondela, foi ao Centro de Ovinicultura do Tojal Mau, onde trabalhava, para saber informações sobre uma mamoa (monumento megalítico) que aí teria existido, a maior da Região Centro, destruída em 1961.
«Logo naquelas palavras percebi que o senhor professor era a pessoa certa para eu contar o segredo», disse António Ferreira, explicando que, após uma visita, o docente confirmou que se tratava de «um achado excepcional».
O que de imediato chamou a atenção a Jorge Gomes foi uma das serpentes - com a cabeça a terminar em «covinha» (cup-marks ou fossettes) - que simboliza a sexualidade e a fecundidade feminina.
Parte das gravuras já terá estalado devido ao calor e à chuva, mas, na sua opinião, o que resta deste exemplar de «arte naturalista» não deixa dúvidas.
«Estas gravuras representam o culto da fecundidade, pela posição das imagens», afirmou, esclarecendo que a imagem masculina supostamente estaria a oferecer aos deuses, em agradecimento pelo nascimento, um machado, que seria um dos objectos mais importantes da época.
No período do Calcolítico e Bronze Inicial, as pessoas continuavam a viver da pastorícia e da agricultura, mas começavam a aparecer os primeiros metais, como o cobre e o bronze, e, com eles, surgia a diferenciação social.
Além das «covinhas» nas cabeças das serpentes, há outras isoladas, que, «ainda que não haja unanimidade sobre o que representam, podem ser delimitações geográficas ou de santuários, de pontos onde se pode ir para zonas transcendentais».
O docente identificou o período em que terão sido feitas as gravuras, que foi recentemente confirmado por um especialista do Parque Arqueológico do Vale do Côa que visitou o local.
«Este tipo de imagem é extremamente raro neste período. Geralmente aparecem cenas de caça, de equitação, ligadas à agricultura, mas relativamente ao culto da fecundidade é extremamente raro», frisou.
Defende, por isso, que se trata de uma descoberta «extremamente importante não só em termos da arte da Europa Atlântica, como inclusive da arte galaico-portuguesa, também denominada noroeste peninsular».
Segundo Jorge Gomes, «este achado legitima e confirma o que os especialistas têm defendido: que estas civilizações davam uma importância extrema ao culto da fertilidade».
O estudioso considera que o local foi escolhido para fazer as gravuras pelo tipo de pedra, «extremamente fácil de trabalhar», e também por esta estar ligeiramente em declive e ter uma vegetação rasteira, com o Rio Dinha ao fundo.
«Poderia, eventualmente, servir para santuário devido à sua morfologia. E, inclusive, está direccionada para leste, ou nascente, o que prova, em parte, o culto solar», explicou, acrescentando que «as pessoas podiam ter acesso a estas gravuras, que seriam facilmente localizáveis nas primeiras horas do dia».
Jorge Gomes disse já ter feito algumas descobertas arqueológicas na região, como várias mamoas, mas nunca ter encontrado algo desta importância.
O achado já foi dado a conhecer aos serviços regionais do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (IGESPAR) e à Câmara Municipal de Tondela, que prometeram preservá-lo e «fazer um estudo exaustivo ao local».
Até lá, António Ferreira e Jorge Gomes fazem questão de tapar o painel com folhas de eucalipto sempre que terminam a visita, temendo que os vândalos descubram o local, porque, como justifica o professor, «a população ainda não está inteiramente educada e não compreende o valor que (o achado) tem».
Fonte: (7 Mar 2008). Lusa / SOL: http://sol.sapo.pt/PaginaInicial/Cultura/Interior.aspx?content_id=87855